A porta do porão estava sempre bem fechada. Dois ferrolhos e um cadeado grande. Mesmo assim dava para ver lá dentro pela fresta, e havia aquela caixa. Ficava numa prateleira empoeirada e era retangular, como um caixão. Tinha uma alça de corda na lateral. Era uma aventura pensar nas possibilidades das coisas que haveria lá dentro. Quando cresci, foi só que pude abrir aquela coisa. Mas nada de tesouros, nem sombras havia na caixa. Puras ferramentas sem utilidade mágica. Me vem, se eu tivesse aberto a caixa quando criança, teria encontrado outra coisa, mesmo encontrando a mesma coisa?
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segunda-feira, junho 10
AS CAIXAS DA INFÂNCIA
A porta do porão estava sempre bem fechada. Dois ferrolhos e um cadeado grande. Mesmo assim dava para ver lá dentro pela fresta, e havia aquela caixa. Ficava numa prateleira empoeirada e era retangular, como um caixão. Tinha uma alça de corda na lateral. Era uma aventura pensar nas possibilidades das coisas que haveria lá dentro. Quando cresci, foi só que pude abrir aquela coisa. Mas nada de tesouros, nem sombras havia na caixa. Puras ferramentas sem utilidade mágica. Me vem, se eu tivesse aberto a caixa quando criança, teria encontrado outra coisa, mesmo encontrando a mesma coisa?
segunda-feira, agosto 27
A MENINA DA JANELA
Sempre que alguém a via pelo vidro da janela,
era como um fantasma, uma aparição. O vidro era embaçado e ela ficava lá
parada, parecia olhar para as pessoas que passavam na rua abaixo. A janela
ficava no segundo andar e as crianças sempre paravam na volta da escola para
vê-la. Estava sempre lá. Quando chovia na noite anterior seus cabelos amarelos
ficavam escuros. Algumas pessoas tinham medo dela. Diziam que vê-la trazia
mal-agouro. Ela não sorria, não dava para saber se piscava ou não. Os vidros
embaçados.
Um dia, uma menina da rua jogou uma pedra no vidro,
estilhaçando-o, e saiu saltitando. Nesse dia, a menina da janela sumiu. Os
cacos de vidro nunca chegaram a tocar o chão enquanto caiam lentos. Foram
desaparecendo no ar junto com a chuva que começava a cair. A menina da janela
nunca mais foi vista. Alguns acham que talvez ela nunca tenha existido.
terça-feira, julho 3
UM SAPO GRANDE E SUCULENTO
O sanduíche era gordo. Redondo. Parecia um sapo dormindo em
cima do prato. Dava para ver o recheio no meio dos dois pedaços de pão. O
hambúrguer estava bem grelhado e brilhava delicioso, e por cima, queijo
derretido, pedaços de pepino, tomate.
Ele pegou a
coisa com as duas mãos, com cuidado. Deu ainda uma última olhada antes de levá-lo
à boca, aberta ao máximo a fim de abocanhar tanta envergadura. Mas eis que, na
primeira mordida, ao apertar forte com os dentes, o tal pulou as vísceras para
fora, por trás, deixando-lhe apenas as tampas de pão, vazias nas mãos. O
recheio, com um ploft, foi todo ao chão.
Ainda pensou em
apanhar de volta, juntar tudo rapidamente, mesmo com a maionese já suja de germes.
Mas só olhava abobado, boquiaberto, sem acreditar na enorme tragédia. Por fim,
atirou longe as duas metades de pão e correu de volta ao balcão da lanchonete.
– Mais um,
completo!
sábado, junho 23
HOMENS DAS CAVERNAS NÃO BRINCAVAM COM FOGO
– Apague esse fogo!
Uga Junga não sabia falar, mas dizia isso socando a cabeça
daqueles que se metiam com a praga luminosa e quente. Além de socos, seu
discurso continha berros, urros e gritos. Afinal, ele era o chefe do bando e
tratava de fazer seus homens trabalharem duro e não se envolverem em
brincadeiras inúteis e perigosas, como essa novidade de agora, o fogo.
As tarefas do bando eram complexas e estavam sob sua
supervisão. Afiar pedras para usarem como pontas de lança nas caçadas de
mamute, produzir e preparar cordas feitas de folha, cavar buracos para coletar
água da chuva, e... Mas que diabos? De novo? Uga Bu estava, DE NOVO, brincando
com fogo?
Uga Junga ferveu de raiva. Desceu ligeiro da pedra alta onde
ficava empoleirado na entrada da caverna e foi escorregando pela lateral até
bater no chão com um baque, em pé. Imediatamente começou a esbravejar pelo meio
do bando. Todos pararam, assustados.
Ele queria dar um chute nos gravetos de Uga Bu, que
queimavam com aquela luz amarela hipnotizante, mas não se atrevia a tocar
naquela coisa. Da última vez que fizera isso teve dores horríveis durante
muitas luas.
Uga Bu não se levantou enquanto o chefe esgoelava-se em sua
orelha. Agachado estava, agachado ficou, respeitoso. No máximo fazia sons
pacíficos e balançava a cabeça de modo submisso a fim de explicar que aquela
coisa luminosa poderia ser útil ao bando.
Uga Junga não era bobo. Quem aquele Uga-Ninguém pensava que
era para afrontar suas ordens? Tanto fez que o fogo acabou apagando. Sabia que
não era fácil criar aquela coisa e esperava que Uga Bu, que permanecia
encolhido, tivesse aprendido a lição com os gritos e socos.
Benevolente, não espantaria Uga Bu do bando, pelo menos não
ainda. Era bom ter com quem gritar. Mas, enquanto voltava poderoso para sua pedra
no alto da entrada da caverna, pensou, sem querer, em uma utilidade prática
para o fogo.
domingo, maio 20
NOITE FELIZ
–
Esconda a árvore de Natal, rápido.
Era uma árvore pequena, devia medir uns
trinta centímetros. Enfiei-a numa das gavetas da estante e voltei correndo para
o sofá. Meu pai estava atrapalhado escondendo os presentes. Tentava empurrar os
embrulhos para debaixo do sofá. Ajudei com o calcanhar enquanto fitava a porta
da sala que se abria junto com uma lufada de vento.
Minha mãe entrou tremendo de frio e
soltou um suspiro.
– Parece que está nevando mais a cada ano
nesse lugar.
Sacudiu o casaco e pendurou no cabide
perto da porta, deixou sua vassoura encostada na parede ao lado das outras e
olhou para nós.
– Tudo bem? – Perguntou desconfiada.
– Tudo ótimo, amor – disse meu pai se
levantando e indo de encontro a ela.
Eles se abraçaram. Mas ela já sabia. Não
era a primeira vez que meu pai tentava convencê-la a comemorarmos o Natal.
Ela se afastou e disse carinhosamente:
– Não.
– É só uma árvore – insistiu meu pai.
– Não é "só uma arvore" – disse
ela, imitando o tom pedinte do meu pai. – Você sabe bem o que isso representa.
– Mas já faz mais de trezentos anos. Você
não vai esquecer nunca?
Minha mãe ergueu a manga da blusa e
mostrou a cicatriz enorme no braço. Meu pai ficou sério. Virou o rosto e se afastou
dela na direção do balcão da cozinha. Eu já sabia o que estava por vir. Todo
Natal era a mesma coisa.
– Quer ver as outras? – Ela perguntou
cinicamente.
– Eu também tenho essas marcas, você sabe
– retrucou meu pai.
Subi para o meu quarto. A discussão ia
durar horas. Não que eu gostasse de árvores de Natal. São legais e tudo, mas
não tenho nenhum apreço especial por elas, meu pai que é obcecado. Gosto só dos
presentes. Sei que não tem essa de Papai Noel que desce por chaminés e bobagens
do tipo. Aliás, o tal Noel vem de São Nicolau que era um bispo cristão. Então não
tenho nenhuma simpatia pelo cara.
Quem comprou os presentes foi meu pai.
Ele me mostrou os embrulhos logo que chegou em casa. Não sei o que tem dentro
das caixas. Mas sou bom em deduções. Meu pai dá pistas e eu sempre acabo
adivinhando.
Todos os anos, não foram tantos assim na
verdade, meu pai e eu trocamos presentes escondidos da minha mãe. No ano
passado eu dei uma pata de gato descarnada para ele. Pode usar como chaveiro ou
pingente. Ele me deu uma foice pequena com cabo revestido de couro de lagarto.
As cicatrizes que eles falaram são de
queimaduras. Os dois foram queimados vivos numa fogueira em 1682 acusados pela
inquisição francesa no famoso Caso dos Venenos que arrasou a corte de Luís XIV.
Vários nobres envolvidos, uma loucura, até a amante do rei, Madame Montespan,
quase foi parar na fogueira também. Depois do tumulto, meus pais mudaram de
nome e saíram da França.
Hoje, moramos num bairro bem legal de
Londres. Minha mãe trabalha na prefeitura e meu pai continua buscando pela
Pedra no laboratório do porão. Temos o Elixir, muita gente tem, mas não temos a
Pedra. Então, como você deve ter adivinhado, não somos ricos. Eu estudo no
quinto ano em uma escola perto de casa.
Ah, esqueci de me apresentar. Meu nome é
Michel Filastre, tenho onze anos e sou um garoto normal, para um filho de
bruxos, claro.
sexta-feira, maio 18
OS BRINQUEDOS DO BAÚ
sábado, maio 12
ÁRVORES
As árvores são eternas e ficam sempre conosco.
Lembro das curvas dos galhos. De cada ponto onde apoiar o pé, onde laçar a mão na subida. Galhos a desviar da cabeça, dos ombros, a coxa dando apoio, o braço alçando uma ida às alturas. O chão ficando abaixo e menor. E lá de cima eu era eu. Lá em cima era um outro mundo. As folhas e galhos, meus olhos por entre elas e eles. E o mundo ficava lá fora, além das alturas. A árvore era uma nave e com ela eu viajava longe, voava. Eu, a árvore e meu mundo, lá abaixo.
As árvores, sim, são eternas e aquela árvore existe ainda assim, de um jeito. Ficou retida no tempo depois de cortada. Quando veio ao chão em seu tronco, fez barulho de morte. Sonoro, alto. Era um grito, eu sei. Ela me chamava, implorava. Minha embarcação, minha amiga, ia a pique por ordem minha, seu capitão. Se eu soubesse não teria cortado. Se eu soubesse que elas são eternas não teria deixado. Ela ficaria a deriva sem nunca sair do lugar e me agradaria. Com algum movimento da folhagem agradeceria e me convidaria para subir de novo e voar. E eu iria.
Lembro das curvas dos galhos. De cada ponto onde apoiar o pé, onde laçar a mão na subida. Galhos a desviar da cabeça, dos ombros, a coxa dando apoio, o braço alçando uma ida às alturas. O chão ficando abaixo e menor. E lá de cima eu era eu. Lá em cima era um outro mundo. As folhas e galhos, meus olhos por entre elas e eles. E o mundo ficava lá fora, além das alturas. A árvore era uma nave e com ela eu viajava longe, voava. Eu, a árvore e meu mundo, lá abaixo.
As árvores, sim, são eternas e aquela árvore existe ainda assim, de um jeito. Ficou retida no tempo depois de cortada. Quando veio ao chão em seu tronco, fez barulho de morte. Sonoro, alto. Era um grito, eu sei. Ela me chamava, implorava. Minha embarcação, minha amiga, ia a pique por ordem minha, seu capitão. Se eu soubesse não teria cortado. Se eu soubesse que elas são eternas não teria deixado. Ela ficaria a deriva sem nunca sair do lugar e me agradaria. Com algum movimento da folhagem agradeceria e me convidaria para subir de novo e voar. E eu iria.
terça-feira, maio 8
O CAVALO
Os cascos do cavalo tamborilavam nas pedras da ruazinha. Eram muitas até chegar à prefeitura. Ruas abertas, passando gente. Vielas com casinhas de janelas abertas. Becos pequenos e com cheiro de estrume recente. Muitos cavalos amarrados ficavam meditando junto aos postes nessa cidade. Logo, ele e seu homem chegaram à prefeitura. Era de janelas abertas, como a maioria das outras casas, só era maior. O homem arriou do cavalo, fez entrar na prefeitura e o cavalo já a meditar com seus irmãos. Nada parecia se mover quando o cavalo não andava. As casas paravam de ir para trás, sempre para trás. Era o estado de imobilidade das pedras do chão. O momento em que elas descansavam arrumadas. Passou bem uma hora e o homem saiu. Subiu rápido e saiu feliz a galope. As pedras ligeiras da rua entraram em atividade na hora. Vida de cavalo era não saber porque o homem montado estava feliz a galope. Era não saber porque estava feliz a galope. Mas até as pedras da rua estavam a galope então que importava os saberes dos porquês. Afinal ele era um cavalo.
quarta-feira, maio 2
A GATA

Foi então que a mulher miou lá de cima. Miou com agrado e trouxe na boca um pedaço de sardinha até o chão, colocou na vasilha dela e deu uma lambida em sua cabeça. A gata devorou o pedaço. Fibroso e desmanchado, com alguns espinhos deliciosos. Não precisava nem morder, dar uma volta pela boca para reter o sabor e engolir inteiro.
Ela queria mais um daquele. Não se conteve. Pulou em cima da mesa. Uma imensidão. Um mar de sardinhas a perder de vista. Ela sabia. Nem pôde escolher e já estava fora da casa inteira. Estava de repente no quintal da casa ainda com aquele gosto gigante na boca. Mas ela não lamentava. Espreguiçou-se toda e foi deitar ao sol.
quinta-feira, abril 26
O PIRATA
O
pirata era nojento. Sentado esparramado na cadeira, deixava a barriga gorda e
peluda para fora da camisa de propósito. Bebia e babava pelos cantos da boca. A
barba era espessa com muitos fios brancos, e sempre meio molhada de baba ou de
rum. Ao tossir, e ele sempre tossia, quase vomitava.
Pensamos que estava dormindo com o
queixo preso no peito, mas quando aquele homem entrou na taberna ele abriu o
olho, único que tinha. O homem caminhou altivo, elegante e colocou-se frente ao
pirata. De seu terno impecável o homem perguntou: “Onde?”. O pirata não se
moveu por um instante, depois, lentamente, sua mão suja e de unhas compridas
tirou do bolso uma corrente grossa de ouro com uma medalha reluzente. Um
sorriso encardido abriu-se no rosto do pirata, mas ele não emitiu nenhum som. O
homem, ainda de pé, sério, tirou do bolso do paletó um envelope e colocou sobre
a mesa. Com a outra mão, o pirata abriu desajeitado o envelope e olhou seu
interior. Sorriu mais uma vez com um leve pigarro, impediu uma tosse, e jogou a
corrente de ouro para o homem que a guardou no bolso e saiu ligeiro.
Nunca mais se ouviu falar do homem de
terno alinhado. Quanto ao pirata, ele continua por aqui, vendendo
mapas do tesouro incrustados em medalhas brilhantes para homens ricos e de boa
fé. Estranho que nunca ninguém tenha voltado.
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