segunda-feira, dezembro 12

UM CADÁVER NA COZINHA - CAPÍTULO 22


O NECROTÉRIO

Antes de sair da camionete de Botelho, Durval olhou seu relógio de pulso. Faltavam dez minutos para as dez da noite. Abriu a porta e desceu apoiado na bengala. Botelho já estava caminhando na direção da porta da frente do prédio. Era um edifício antigo e maltratado de três andares. A pintura branca estava escurecida e descascada. Se não fosse a luz acesa numa das janelas do primeiro andar, daria para pensar que o lugar estava abandonado. Ao lado da porta dupla de vidro da entrada havia uma placa onde se lia “Necrotério da Cidade de Santa Tereza”. Durval caminhou lentamente até a porta da frente onde Botelho falava com alguém pelo interfone.
  — Sim, ele está comigo — disse Botelho.
  Com um “clunc” a porta destrancou. Botelho abriu e esperou Durval entrar. O saguão do prédio estava vazio e escuro. Apenas a luz da rua entrava pela porta de vidro e iluminava de um lado um balcão de atendimento e do outro várias cadeiras enfileiradas. Botelho fechou a porta atrás de Durval e foi até o início das escadas que desapareciam nas sombras. O lugar dava calafrios, e havia um cheiro que Durval não conseguiu identificar. Parecia de toucinho ou gordura, era um cheiro de carne crua.
  — Vamos, meu velho — disse Botelho, impaciente.
  — Estou ficando cheio disso! Onde estamos indo, diabos?
  — Calma. Já tudo se explica. O Rogério está nos esperando.
  — Quem é Rogério?
  — O legista.
  E então Durval sentiu-se atingido por um raio ao imaginar o que estariam fazendo ali. Botelho estaria levando-o para ver o corpo de Dolores? Durval sentiu as pernas tremerem. Abriu a boca, mas não conseguiu formar uma frase. Apenas balbuciou.
  — A Dolores? A Dolores?
  — Não, meu velho! Não se trata disso.
  — A Dolores está…
  — Não sei onde ela está, mas não está aqui, posso garantir.
  Aquilo não era exatamente algo que deixasse Durval aliviado. Afinal, sua mulher estava desaparecida há quase cinco horas. Mas sentiu-se um pouco melhor.
  — Vamos de uma vez ver o que você quer me mostrar! — Rosnou.
  Durval subiu as escadas atrás de Botelho.
  Saíram num corredor longo e escuro. A poucos metros, uma porta lateral entreaberta projetava uma luz fluorescente. Enquanto se dirigia até porta, Durval cismou onde estaria se metendo.
  Adentraram a sala principal do necrotério. No fundo havia uma parede com várias portas de geladeira de aço. Uma delas estava aberta e dava para ver os pés de um cadáver lá dentro. No meio da sala quatro mesas também de aço. Três delas estavam com corpos cobertos com lençóis brancos. Só os pés ficavam para fora do lençol. O cadáver da quarta mesa não estava coberto. Pelo contrário. Estava completamente aberto, da base do pescoço até o umbigo. O legista debruçado sobre o defunto, remexia dentro dele. Ao ouvir Botelho e Durval entrando na sala, virou-se para eles e sorriu.
  — Já não era sem tempo!
  Caminhou até eles tirando uma das luvas cheia de sangue e cumprimentou Botelho com uma aperto de mão firme.
  — Este é o Durval que te falei — disse Botelho.
  O legista olhou para Durval e estendeu a mão.
  Durval apertou a mão dele imaginando que há poucos segundos ela devia estar segurando o fígado de um morto. Quase sentiu náusea, mas sorriu e disse:
  — Muito prazer.


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Um Cadáver na Cozinha é um folhetim escrito por José Gaspar e publicado na coluna "Histórias de Mistério" do jornal The Brazilians em Nova York.

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sexta-feira, agosto 5

UM CADÁVER NA COZINHA - CAPÍTULO 21


NÃO CONFIE EM NINGUÉM
Durval não teve tempo de responder ao professor de Biologia. Logo depois de dizer que estava vindo até a casa de Durval, Botelho desligou o telefone.
  Durval ficou ainda alguns segundos com o fone na orelha ouvindo o silêncio, catatônico. Lentamente pousou o fone no gancho e voltou para o sofá. Os pensamentos simplesmente não se formavam em sua mente. Parecia que o cérebro havia abandonado a caixa craniana. Olhou em volta do sofá. Onde estava a bengala?
  — Joana?
  — Pois não, seu Durval? — Gritou a empregada da cozinha.
  — Você viu minha bengala?
  — Não vi, seu Durval. Não está apoiada na mesinha aí da sala?
  Se o raio da bengala estive na mesinha na sua frente ele teria visto. Ora essa!
  Olhou para o relógio de parede: nove horas da noite. Dolores havia sumido há mais de quatro horas. Onde estaria a pobre mulher? E Botelho estava a caminho. Durval não confiava mais no amigo professor de Biologia. Poderia ser ele mesmo o assassino. E se fosse, poderia estar vindo até sua casa para acabar com sua vida, como já havia tentado fazer quando empurrou Durval do barranco dentro do carro. E se Botelho fosse o assassino, teria sido ele também quem sequestrara Dolores. Mas por que teria levado Dolores e só agora voltado para pegar Durval?
  — Que fazer? — sussurrou Durval com seus botões. — Que fazer?
  Ligar para a polícia não adiantaria nada, já que o delegado Moreira estava morto. Nem a própria polícia estava sabendo lidar com aquele caso.
  Durval estremeceu no sofá quando a campainha tocou.
  Joana passou pelo corredor gingando seus 130 quilos e foi abrir a porta da frente.
  Botelho entrou quase atropelando a mulher e foi direto até Durval no sofá. Com o susto, Durval levantou os dois braços para proteger-se.
  — Durval, meu velho. Você precisa vir comigo agora!
  — Do que diabos está falando?! — gritou Durval.
  — Estou falando do assassino, amigo! Do assassino!
  Durval sentiu novamente o coração palpitar. Seus olhos se encheram de lágrimas e ele suspirou fundo.
  — Acho que eles sequestraram a Dolores — disse Durval quase chorando.
  — Então já são quatro — disse Botelho.
  — Quatro?
  — O cadáver encontrado na sua cozinha, o delegado Moreira, meu caseiro, e agora Dolores.
  — O Josenildo sumiu?
  — Não aparece há três dias. Falei com a mulher dele e ela disse que não voltou para casa desde terça-feira.
  — Precisamos avisar a polícia sobre esses desaparecimentos.
  — Você enlouqueceu? Podem ter sido justamente eles que sequestraram Dolores e o Josenildo!
  — A polícia?
  — Não confie em ninguém, meu velho.
  — Devo confiar em você, imagino.
  — Você não precisa confiar em mim. Quero que veja com seus próprios olhos.
  — Quer que eu veja o que? Dá última vez que dei ouvidos a você acabei preso. Aliás como você sabia que o cadáver estava na floresta? E o que ele estava fazendo dentro de um caixão de metal?
  — Venha comigo e vou responder todas as suas perguntas. Não podemos ficar aqui.
  — Aonde vamos?
  — Ao necrotério da cidade.



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sábado, julho 16

UM CADÁVER NA COZINHA - CAPÍTULO 20


TREZE POR NOVE
Durval recobrou os sentidos lentamente. Tudo era uma mistura confusa de imagens e sons. Uma luz forte bateu intermitente em seus olhos. Foi e voltou. A luz chegava a doer no fundo da cabeça. E havia um homem careca debruçado sobre ele. Procurou manter a calma, mas sentiu o coração acelerando e a respiração ficando mais e mais curta. Tentou desvencilhar-se de quem quer que fosse e sair correndo daquela situação, mas as mãos do homem seguraram seus braços.
               — Calma, senhor Durval.
                Durval quis falar, mas a boca estava tão seca que parecia colada. Viu Joana ao lado do paramédico e conseguiu balbuciar:
               — Água.
                Joana saiu correndo e em segundos estava de volta com um copo de água.
                Aos poucos foi voltando do desmaio. Estava deitado no sofá da sala com a camisa aberta. À sua volta dois paramédicos, o careca e uma jovem de óculos. Os dois estavam vestidos com macacões azuis com riscos vermelhos.
               — Minha mulher. Onde ela está?
                O paramédico olhou para Joana.
               — Ela ainda não voltou, seu Durval.
                Durval sentiu novamente o coração bater mais rápido.
               — Senhor Durval — disse o paramédico. — O senhor teve uma crise hipertensiva, um aumento brusco da pressão. O senhor toma algum remédio para controlar a pressão arterial?
               — Só tomo Propanolol desde que fiz uma ponte de safena.
               — Certo. É um anti hipertensivo. O senhor está bem agora. A pressão está em treze por nove. Ainda um pouco alta, mas não representa perigo. O ideal é que o senhor marque uma consulta com o seu cardiologista o quanto antes.
               — Certo. Vou fazer isso.
               — Qualquer coisa pode ligar para o serviço de emergência a qualquer hora — disse a jovem de óculos.
               — Está bem. Obrigado. Obrigado.
Joana acompanhou os dois até a porta e voltou.
               — Quer alguma coisa, seu Durval?
               — Quero a minha mulher.
               — Onde, benza Deus, será que ela foi assim de repente?
                Durval baixou a cabeça e respirou fundo. Depois de um momento, a empregada perguntou:
               — Quer que eu ligue para alguém?
               — Não. Me deixe pensar um pouco.
                Joana saiu da sala.
                Durval fechou os olhos. Não sabia o que fazer. Estava completamente desnorteado. Ligar para a polícia de novo? Haviam dito que o delegado Moreira tinha sido assassinado naquela tarde. O que diabos estava acontecendo na cidade? Quem seria o responsável por tudo aquilo? Já eram duas mortes e uma tentativa de homicídio, a dele próprio, quando o assassino o empurrou da ribanceira dentro do carro. E agora, ainda por cima, Dolores estava desaparecida. Teria sido sequestrada? Olhou para o relógio de parede. Quase oito e meia da noite.
                Durval procurou a bengala em volta do sofá, mais uma vez ela não estava por perto. Resolveu levantar-se assim mesmo. O pedaço de madeira encurvado na ponta nunca estava lá quando precisava dele. Ao diabo com a bengala. Com esforço levantou-se e foi até a escrivaninha. Puxou a cadeira e sentou-se com cuidado procurando manter a perna engessada de lado. Bufou cansado. Puxou o telefone para perto, mas antes que pudesse tirar o fone do gancho, ele tocou. Durval levou um susto e estremeceu.
Lentamente pegou o fone e levou ao ouvido. Ouviu a voz rouca:
               — Aqui é o Botelho. Preciso falar com você. Estou indo aí.


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segunda-feira, junho 27

UM CADÁVER NA COZINHA - CAPÍTULO 19


O SUMIÇO
Durval sabia que deveria ligar para um advogado, mas simplesmente não tinha energia nenhuma para fazer isso. Deitado no sofá, tocava Canon em Ré Maior de Pachellbel na flauta contralto. A música barroca sempre teve o poder de trazer serenidade e calma para Durval. De olhos fechados, os dedos moviam-se com precisão pelo corpo do instrumento, e as notas envolviam Durval como um manto protetor, tranquilizando os pensamentos, praticamente evaporando a inquietação. Por entre as notas não havia confusão. Tudo era preciso e certo. Cada som e pausa imprescindível, primoroso. Uma nota subtraída e haveria diminuição, uma nota acrescentada e a beleza se perderia. A matemática da música era como uma trincheira sempre disponível. A escolta que o protegeria de todos os inimigos.
               O som da campainha irrompeu acima da música. Durval não se mexeu. Continuou tocando de olhos fechados. Outra vez a campainha soou.
              Dolores desceu as escadas e foi até a porta.
              Durval a ouviu indistintamente conversando com alguém por trás da música. Estranhamente a voz da pessoa parecia familiar, mas Durval não conseguiu identificar de quem era.
              Então o silêncio.
              Durval esperou Dolores voltar, imaginando que a pessoa teria ido embora. Mas ela não voltou.
              Depois de mais uma frase da música, Durval tirou a flauta da boca e abriu os olhos.
             — Dodô?
              Nada.
             — Dolores?
              Aguçou os ouvidos e meneou a cabeça: nada.
              Resmungou alguma coisa, colocou a flauta na mesinha lateral e se pôs a levantar do sofá. Primeiro a perna boa. Depois a engessada. Onde estava a bengala? Com jeito curvou-se e apanhou-a do chão. Usando as duas mãos na bengala, levantou-se. Esperou o equilíbrio, e então, pé ante pé, foi até a porta da sala.
              Aberta.
              Olhou em volta pela varanda e no quintal repleto de plantas à frente. Nada de Dolores.
             — Joana? — esperou um segundo. Então de novo: — Joana! Vem aqui, mulher!!
              Joana chegou por trás:
             — O que foi, Seu Durval?
             — A Dolores veio aqui atender alguém e simplesmente sumiu. Vai até ali no portão da rua e veja se ela está por lá.
              Durval esperou a empregada ir até o portão. A mulher foi e espichou o corpo gordo e mole de cento e trinta quilos por cima do portão. Olhou para um lado, para o outro. Depois abriu o portão e saiu para a calçada. Olhou de novo para um lado e para o outro.
              Então voltou.
             — Ela não tá na rua, não, Seu Durval.
              Mais essa!
              Durval voltou para dentro e foi até o telefone na escrivaninha da sala, discou rápido com a mão já trêmula de ansiedade.
             — O delegado Moreira, por favor? Sim… Aqui é o Durval.
              E então ele ouviu a atendente dizer-lhe que o delegado Moreira havia sido assassinado há menos de trinta minutos dentro de sua sala, na delegacia.
              Durval sentiu as pernas amolecerem. Tentou segurar-se na beirada da escrivaninha, mas não havia nenhuma força nos braços ou nas pernas. Lentamente foi ao chão. Sentiu a respiração faltar-lhe, puxava o ar, mas ele não vinha. As vistas foram escurecendo. Sabia que ia desmaiar. Então ele viu os pés de Joana de chinelo. A mulher parou bem perto dele. Durval viu quando ela se abaixou e pegou o telefone de sua mão.
              A última imagem foi a de Joana colocando o fone no gancho.


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quarta-feira, maio 4

UM CADÁVER NA COZINHA - CAPÍTULO 18


O INTERROGATÓRIO

             — Então você confirma que a faca é sua?
              Em cima da mesa, dentro de um saco plástico transparente, repousava a faca com cabo de madeira entalhada.
             — Sim, já disse! Era minha faca de pesca… — Durval estendeu a mão na direção da faca, mas o delegado Moreira a afastou.
             — Não sei como ela foi parar com o Botelho — continuou Durval. — Faz tempo que não vou pescar. Ainda mais agora, todo quebrado — apontou para o gesso na perna.
              Durval olhou bem fundo nos olhos de Moreira:
             — Parece que você não vai acreditar em mim, não é?
             — É você que está dizendo isso.
             — Será possível que você acha eu sou o assassino? Justamente eu, a única pessoa que desde o início disse que havia um cadáver nessa história? Nem nisso você acreditou.
              Durval sentiu o sangue ferver dentro do rosto. Apertou os punhos com força e ficou na ponta da cadeira enquanto falava com a voz cada vez mais rouca de raiva.
             — Se eu fosse o assassino porque diabos estaria investigando? Por que teriam me empurrado do alto de um precipício dentro do meu próprio carro? O que eu estaria…
              Faltou-lhe o ar. Começou a tossir e pigarrear. Queria continuar a falar, esbravejar. Não suportava a ideia de desconfiarem dele. De duvidarem de sua idoneidade, de sua honestidade. Pior ainda, acharem que ele teria sangue frio para matar uma pessoa. Aquilo era absurdo! E onde estava Dolores?
             — Onde está a minha esposa?
             — Na outra sala.
             — Quero vê-la imediatamente!
              Moreira levantou-se da cadeira e saiu pela porta.
              Durval tentou recuperar o fôlego. Abaixou a cabeça e respirou fundo, apertou os olhos. Talvez fossem precisar de um advogado.
              Em menos de um minuto a porta abriu-se e Dolores entrou.
             — Durval! Meu bem! O que eles fizeram com voce?
             — Nada, Dodô. Estou bem. E voce?
              Dolores olhou para o delegado que estava em pé. Durval viu faíscas sairem dos olhos de sua mulher.
             — Delegado, vou agora com o meu marido para nossa casa! Se tiver mais perguntas terá que nos prender.
              Dolores começou a ajudar Durval a levantar-se.
              O delegado ficou olhando enquanto o casal caminhou pelo corredor da delegacia indo até a porta da frente.
              Durval ficou parado na porta enquanto Dolores foi até a calçada à procura de um táxi. Ele sentiu orgulho da mulher. Queria abraçá-la agora mesmo, dizer que a amava e que ela tinha sido magnífica ao confrontar o delegado daquela forma.
              Havia começado a garoar quando Dolores conseguiu fazer um táxi parar. Ela voltou até a porta da delegacia e ajudou Durval a caminhar com a bengala até a calçada e entrar no táxi.
              Durante a trajeto até a casa, os dois ficaram de mãos dadas no banco de trás. Não falaram uma palavra. Durval estava exausto.
              E então Durval sentiu um frio na espinha quando se lembrou do dia em que havia usado aquela faca com cabo de madeira pela última vez. Lembrou-se claramente da pescaria que fizera na represa de Santa Tereza. Botelho estava com ele e havia pedido a faca emprestada. O professor nunca mais a devolvera.


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segunda-feira, abril 11

UM CADÁVER NA COZINHA - CAPÍTULO 17


O CADÁVER, ENFIM

             Os olhos arregalados de Durval não piscavam quando Botelho destravou as duas trancas de metal na lateral do caixão e abriu a tampa com um rangido.
             Retorcido como uma corda grossa, o cadáver mais parecia um fantasma de tão branco. As roupas, de tal maneira puídas, pareciam um véu branco cobrindo o corpo, fios finos como teias de aranha estendiam-se do corpo até as laterais de dentro do caixão. Ao que parecia o caixão havia ficado mergulhado nas águas do rio por muito tempo. A pele estava esponjosa e quase transparente, permitindo ver as saliências dos ossos. A barriga era bem visível e parecia uma massa disforme que balançava como gelatina prestes a desgrudar da colher. A cabeça estava tão inclinada em relação ao corpo que parecia solta do pescoço. Os globos oculares estavam projetados para fora, sem pálpebras, e a boca semiaberta parecia prestes a dizer alguma coisa. Quando Botelho soltou com um baque a tampa aberta do caixão, o corpo todo tremeu e o rosto virou de um lado para o outro como se dissesse "não" com veemência.
             Durval ouviu um “ploft”. Olhou para o lado e viu Dolores caída no chão. Sem pensar duas vezes correu para ajudar a mulher. Por sorte ela tinha caído em cima do monte de galhos e folhas que Botelho usara para cobrir o caixão. Com cuidado Durval abaixou-se ao lado dela, dando um jeito de sentar-se na pilha de galhos. A bengala do lado.
            — Dodô! Meu bem!
             Durval esfregava as mãos de Dolores com força na tentativa de acordá-la do choque.
            — Eu sabia que não devia ter vindo com ela — disse para si mesmo. Então olhou para Botelho: — Por que você não avisou antes sobre o estado do… olha a situação! Olha isso! — Apontou para o cadáver.
            — Eu não sabia que ele já estava assim, todo se desfazendo. Quando o vi pela primeira vez estava melhorzinho.
            — Você já tinha visto o cadáver? E não avisou a polícia? O que você…? Como você…? — Durval fez uma pausa buscando concatenar as palavras. Então gritou: — Por que??
            — Por sua causa!
            — Que!? Do que você esta falando??
            — Você é o assassino, Durval. Você o matou, não foi?
             Durval levantou-se apoiado na bengala, sem acreditar no que acabara de ouvir.
            — O que!? Você enlouqueceu de vez?
            — Não adianta negar — disse Botelho com tranquilidade. — Eu tenho a prova.
            — Mas que prova!?
             Botelho olhou em volta, como que para certificar-se de que estavam sozinhos. Então vasculhou o bolso interno do casaco e tirou uma faca. Devia medir uns trinta centímetros de comprimento, o cabo de madeira entalhada e a lâmina reluzente parecia bem afiada.
             Então ouviu-se uma voz:
            — Largue a arma!
             Durval e Botelho olharam na direção da mata e viram meia dúzia de policiais apontando pistolas automáticas em sua direção. Entre eles estava Moreira, o delegado.
            — Jogue a faca no chão e levante as mãos devagar! — gritou Moreira.
             Botelho deixou a faca cair no chão e levantou as mãos. Os braços magros e compridos pareciam dois galhos de árvore.
            — Você também, Durval! — disse o delegado. — Levantem as mãos para cima e virem-se de costas.
             Durval levantou as mãos e virou-se.
            — O que houve, hein? — perguntou Dolores voltando do desmaio.
            — Parece que estamos sendo presos, Dodô.


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quinta-feira, março 17

UM CADAVER NA COZINHA - CAPÍTULO 16


O OUTRO LADO DO RIO

            A trilha pelo meio da mata era estreita e Durval mantinha uma das mãos à frente do rosto para que os galhos não furassem seus olhos. A outra mão segurava a bengala, melhor tomar todo o cuidado do mundo, não queria quebrar a outra perna numa queda. Dolores vinha atrás gemendo de irritação e impaciência. De vez em quando Durval a ouvia cuspir algum inseto que entrara na boca — o lugar era infestado de mosquitos. Botelho ia na frente, pisava com determinação e nem olhava para trás. Bem mais alto que Durval, parecia um louva-deus marchando na direção da presa.
            Durval não estava nada à vontade com a ideia de embrenharem-se na mata com Botelho. Apesar de conhecer o professor de biologia há mais de três décadas, ele era justamente o único suspeito do assassinato que ocorrera em sua cozinha algumas semanas antes.
            De qualquer forma, agora era tarde para arrependimentos. A insegurança que Durval sentia só era menor que a curiosidade que crescia a cada passo. Seria possível estarem prestes a encontrar o cadáver? E como o corpo teria desaparecido de sua cozinha para reaparecer a mais de cinco quilômetros de distância?
           — Estamos quase chegando — disse Botelho sem olhar para trás. — Só mais alguns metros.
            Durval começou a ouvir o barulho de água corrente, deviam estar perto de um rio. Se pelo menos tivesse algo com que se defender. Com a perna quebrada não poderia fazer muita coisa contra Botelho, mas mesmo assim, enquanto caminhava, vasculhou o chão ao redor, se encontrasse pelo menos um galho caído, quem sabe pudesse dar uma paulada em Botelho se ele tentasse alguma coisa… A bengala! Claro! Uma bengalada certeira no queixo faria o louva-deus desmaiar, com certeza.
            O barulho da água ficou mais forte e logo Durval viu um rio caudaloso que cruzava a mata. Devia ter quase cinco metros de largura. Botelho foi margeando o rio até uma pequena ponte de madeira e parou esperando por Durval e Dolores.
           — Pode confiar que a ponte é firme — disse Botelho. — Está velha, mas aguenta. Como nós, meu amigo! — Ele gargalhou antes de atravessar segurando nas laterais com suas mãos longas e ossudas.
            Durval olhou para Dolores.
           — Eu não piso nisso aí — disse a mulher.
            Durval colocou o pé nas primeiras tábuas da ponte e deu três batidas com o calcanhar. 
           — É firme, viu? Pode vir.
            Dolores suspirou e cuspiu outra asa de mosquito. Segurou-se em Durval e o casal atravessou a ponte de mãos dadas.
            Chegando do outro lado, avistaram Botelho alguns metros à frente recurvado sobre uma pilha de galhos e folhas. Desajeitadamente tirava os galhos da pilha e jogava-os do lado. Estavam ainda verdes, parecendo ter sido cortados há pouco tempo para cobrir o que quer que Botelho estava prestes a revelar.
            E então, da folhagem, apareceu um caixão.
            Dolores gemeu e deu um passo para trás de Durval apertando sua mão com força.
            Mas não era um caixão comum, desses de madeira entalhada que se usa em enterros. Parecia ser de metal. Estava enferrujado, com limo e lodo grudados. Tinha duas alças de cada lado e a tampa era ligeiramente abaulada na parte de cima. Também possuía duas trancas na lateral como uma mala de viagem. Botelho destravou as duas com destreza e abriu o caixão.

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