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terça-feira, agosto 7

A VELHA


Ouço um barulho estranho. É a primeira coisa que meus sentidos percebem. Um som contínuo. Sem pausas, mas cheio de entonações. Respiração. Alguém está dizendo palavras. Não dá para entender direito o que está sendo dito, mas são palavras. Ditas em conjunto, sem prestar atenção. Num só fôlego. Chega ao fim e recomeça. Alguém está rezando.
Começo a caminhar. Tentar descobrir quem é. Ainda está longe.
Caminho pelo meio das árvores e me aproximo de uma construção em ruínas. Uma enorme porta dupla está caída de lado e dentro há uma luz fraca que vem lá da frente.
Acima do prédio há uma cruz. Alguém está rezando numa igreja abandonada.
Começo a entrar na igreja. A pessoa está ajoelhada na frente do altar. Acendeu algumas velas pelo chão. Parece não perceber minha aproximação.
É uma velha. Cabelos brancos, rosto marcado como papel amassado. Muito branco. As mãos em oração fechadas sobre o terço. Olhos fechados.
Apesar de estar bem próximo dela, a ponto de poder tocá-la, ainda não posso entender as palavras. Apenas aquele conjunto de sons, como um canto, um pedido ritmado dito em som não em palavras. Não importa afinal o que significam aquelas palavras. É um mantra. Apenas o som faz sentido.
Permaneço ali parado ao seu lado. Uma sensação, mistura de medo e respeito está em mim. Não por ela, nem por sua reza, mas por alguma coisa que está errada naquela cena. Como no jogo dos sete erros, tento descobrir o que é. Há algo estranho na imagem que vejo. Alguma coisa sutil, mas importante que de algum modo está desafiando as leis da física.
Sua boca não se move.
Está fechada. E, no entanto, um clamor alto se faz ouvir. O som penetra em meus ouvidos e ecoa. A velha está rezando.
Parece uma máquina. Um boneco que emite som através de algum mecanismo escondido no peito. Um som que encontra resposta no cenário ao redor e diz algo à minha alma.
Ergo a mão. Lentamente aproximo de seu ombro. Preciso tocá-la. Saber se é real. Concentro-me em seu rosto inerte.
Toco seu ombro. Ela está fria. Gelada. Sem retirar a mão atrevo-me a empurrar seu corpo de leve. O movimento que vejo é o de uma estatua solta da base.
Retiro a mão. Estou olhando para um cadáver frio e duro. Ela está morta. Não há dúvidas sobre isso. Não há nenhum movimento indicando respiração no corpo que está na minha frente.
Aquele som continua sem pausa. Sem descanso. Está vindo dela. Agora, me parece estranho não ter percebido de início que a boca não se movia. E a reza que vem é tão perfeita. Nada de ventriloquismo há nesse som.
Se pudesse eu a calaria. Colocaria minha mão em sua boca e impediria o ar de sair. Mas a velha está morta. Nenhum ar provém dela. Apenas a oração.
Por que está rezando, velha?
O que quer?
Nem a luz das velas responde. Nenhum movimento de sombra a fim de assustar-me. Nenhum soprar sonoro do vento a fim de me fazer fugir dali. Correr de medo e voltar. O lugar me aceita.
Por que está rezando, velha?
Poderia parar?
Se ao menos ela calasse eu iria embora.
Começo a rezar.

sábado, junho 2

SEM CURA


– Não há cura.
O medico disse com tanta convicção que decidi não responder. Seria perda de tempo. Limitei-me a agradecer e sair calado.
Na rua, caminhei por horas. Não queria voltar para casa e encontrar Júlia. A garoa fina de maio começou a cair e o vento frio me fez fechar o casaco. Não me dei ao trabalho de limpar as gotas de chuva nos óculos, conhecia bem o caminho de volta. Quanto mais demorasse para chegar em casa, mais difícil seria.
A porta da casa estava aberta. Entrei e vi Júlia caída no chão da sala. O vento balançava a gola vermelha de sua blusa para frente a para trás. Fui até o telefone e liguei para a ambulância mesmo sabendo que ela já estava morta.
Eu estava alucinando. Júlia tinha morrido há mais de seis anos. Mas saber isso não resolvia nada. A realidade da loucura não depende das lucubrações da lógica. Vai sozinha e chega aonde quer, mesmo ouvindo as suplicas da razão. Eu sabia que minha loucura não tinha cura.
Quando a ambulância chegou, permaneci quieto, sentado no sofá olhando para o sangue que começava a coagular na poça ao lado do corpo. Era vermelho escuro assim como a blusa dela.

quarta-feira, maio 23

O ASSASSINO CEGO


          Chegar até a vitima era a parte fácil. O difícil era acertar o coração. Sim, porque acertando outra parte sempre acabava havendo gritaria e ele não gostava de chamar a atenção. Claro que sempre fazia o serviço na calada da noite, mas desferir mais de um golpe estava fora de questão, era arriscado. Com o tempo desenvolveu a precisão que o serviço requeria. Era um profissional. Tinha ficado tão habilidoso que nem conferia. Depois do golpe, já sabia que a vitima estava morta. Cego, sentia pelo tato quando havia perfurado o órgão vital. Mas, mesmo sendo tão bom no oficio e tão requisitado, agora, com a idade, estava pensando em se aposentar.

quarta-feira, maio 16

LEGIÃO

          Duas velhas caminhavam silenciosamente. As cabeças baixas como se desviassem o olhar e como se não quisessem ser vistas. O cemitério estava escuro e uma neblina encobria rigorosamente o trajeto das velhas. As duas irmãs chegaram à uma sepultura cinza e pararam. Em uníssono: “Mãe da Terra. Vem nos ajudar”. A terra mexeu e o cadáver podre de outra velha juntou-se a elas. Agora eram três velhas caminhando e convocando outras.

sexta-feira, abril 20

O ASSASSINO


          O assassino aproximava-se da vítima sorrateiramente. Caminhava pelo quarto escondido nas sombras, estava decidido. Segurava o machado com as duas mãos, de lado em relação ao corpo, assim se a vítima percebesse sua aproximação ele teria tempo de desferir um golpe rápido. A vítima estava sentada, de costas com a cabeça baixa, parecia estar lendo alguma coisa. Aos poucos, o assassino foi levantando o machado. Daria um golpe certeiro bem no centro da cabeça. Estava a poucos centímetros da vítima agora. Quase dava para sentir seu cheiro. Nenhum barulho nesse momento. Foi então que ele viu de relance. A vítima estava lendo. Ele viu de relance. Sem querer, ele leu. Mas leu de relance. Algumas palavras apenas. Leu sorrateiro de um golpe rápido. Ele estava lendo. A vítima. Sentada lendo. Ele estava decidido. Só algumas palavras, mas sempre lendo. Sem parar. Eram palavras de relance, mas eram para sempre. Agora eram palavras. Apenas palavras, mas ele lia. Ele viu de relance que estava preso. Preso nas palavras que lia
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