quarta-feira, maio 23

O ASSASSINO CEGO


          Chegar até a vitima era a parte fácil. O difícil era acertar o coração. Sim, porque acertando outra parte sempre acabava havendo gritaria e ele não gostava de chamar a atenção. Claro que sempre fazia o serviço na calada da noite, mas desferir mais de um golpe estava fora de questão, era arriscado. Com o tempo desenvolveu a precisão que o serviço requeria. Era um profissional. Tinha ficado tão habilidoso que nem conferia. Depois do golpe, já sabia que a vitima estava morta. Cego, sentia pelo tato quando havia perfurado o órgão vital. Mas, mesmo sendo tão bom no oficio e tão requisitado, agora, com a idade, estava pensando em se aposentar.

domingo, maio 20

NOITE FELIZ

 
– Esconda a árvore de Natal, rápido.
       Era uma árvore pequena, devia medir uns trinta centímetros. Enfiei-a numa das gavetas da estante e voltei correndo para o sofá. Meu pai estava atrapalhado escondendo os presentes. Tentava empurrar os embrulhos para debaixo do sofá. Ajudei com o calcanhar enquanto fitava a porta da sala que se abria junto com uma lufada de vento.
        Minha mãe entrou tremendo de frio e soltou um suspiro.
       – Parece que está nevando mais a cada ano nesse lugar.
        Sacudiu o casaco e pendurou no cabide perto da porta, deixou sua vassoura encostada na parede ao lado das outras e olhou para nós.
       – Tudo bem? – Perguntou desconfiada.
       – Tudo ótimo, amor – disse meu pai se levantando e indo de encontro a ela.
        Eles se abraçaram. Mas ela já sabia. Não era a primeira vez que meu pai tentava convencê-la a comemorarmos o Natal.
        Ela se afastou e disse carinhosamente:
       – Não.
       – É só uma árvore – insistiu meu pai.
       – Não é "só uma arvore" – disse ela, imitando o tom pedinte do meu pai. – Você sabe bem o que isso representa.
       – Mas já faz mais de trezentos anos. Você não vai esquecer nunca?
        Minha mãe ergueu a manga da blusa e mostrou a cicatriz enorme no braço. Meu pai ficou sério. Virou o rosto e se afastou dela na direção do balcão da cozinha. Eu já sabia o que estava por vir. Todo Natal era a mesma coisa.
       – Quer ver as outras? – Ela perguntou cinicamente.
       – Eu também tenho essas marcas, você sabe – retrucou meu pai.
        Subi para o meu quarto. A discussão ia durar horas. Não que eu gostasse de árvores de Natal. São legais e tudo, mas não tenho nenhum apreço especial por elas, meu pai que é obcecado. Gosto só dos presentes. Sei que não tem essa de Papai Noel que desce por chaminés e bobagens do tipo. Aliás, o tal Noel vem de São Nicolau que era um bispo cristão. Então não tenho nenhuma simpatia pelo cara.
        Quem comprou os presentes foi meu pai. Ele me mostrou os embrulhos logo que chegou em casa. Não sei o que tem dentro das caixas. Mas sou bom em deduções. Meu pai dá pistas e eu sempre acabo adivinhando.
        Todos os anos, não foram tantos assim na verdade, meu pai e eu trocamos presentes escondidos da minha mãe. No ano passado eu dei uma pata de gato descarnada para ele. Pode usar como chaveiro ou pingente. Ele me deu uma foice pequena com cabo revestido de couro de lagarto.
        As cicatrizes que eles falaram são de queimaduras. Os dois foram queimados vivos numa fogueira em 1682 acusados pela inquisição francesa no famoso Caso dos Venenos que arrasou a corte de Luís XIV. Vários nobres envolvidos, uma loucura, até a amante do rei, Madame Montespan, quase foi parar na fogueira também. Depois do tumulto, meus pais mudaram de nome e saíram da França.
        Hoje, moramos num bairro bem legal de Londres. Minha mãe trabalha na prefeitura e meu pai continua buscando pela Pedra no laboratório do porão. Temos o Elixir, muita gente tem, mas não temos a Pedra. Então, como você deve ter adivinhado, não somos ricos. Eu estudo no quinto ano em uma escola perto de casa.
        Ah, esqueci de me apresentar. Meu nome é Michel Filastre, tenho onze anos e sou um garoto normal, para um filho de bruxos, claro.

sexta-feira, maio 18

OS BRINQUEDOS DO BAÚ

          Eram brinquedos mortos. Brinquedos sem criança, sem graça, sem rapidez infantil. Eram brinquedos guardados, acertados dentro de caixas que estancavam sua bagunça. Foi então que o filho dele, do dono da caixa, nasceu. Era moleque esperto que nem ele havia sido. Rápido, tirou aquela tampa de caixa e se maravilhou com seus tesouros mortos, que, maravilhados, renasceram, voltaram à vida. Sua graça de volta e então, quebrarem-se de novo, serem esquecidos, enterrados, queimados, mutilados, perdidos, trocados por outros, até vendidos por dinheiro de verdade, estarem embaixo da cama, no bolso da bermuda, caírem da bicicleta. Que maravilha. Seriam, bem logo, brinquedos vivos. Brinquedos de criança.

quarta-feira, maio 16

LEGIÃO

          Duas velhas caminhavam silenciosamente. As cabeças baixas como se desviassem o olhar e como se não quisessem ser vistas. O cemitério estava escuro e uma neblina encobria rigorosamente o trajeto das velhas. As duas irmãs chegaram à uma sepultura cinza e pararam. Em uníssono: “Mãe da Terra. Vem nos ajudar”. A terra mexeu e o cadáver podre de outra velha juntou-se a elas. Agora eram três velhas caminhando e convocando outras.

segunda-feira, maio 14

A PORTA


          Sem perdão ele sussurrava, sussurrava e ia. Ia batendo na porta, haveria portas para ele, ele sabia, sim, sabia que não deveria bater naquela porta, não haveria perdão. Já que ia, bateria, então quase não bateu, mas era sem perdão que pensava sobre a porta para si mesmo. A porta era branca e ele sabia, sabia que coisas brancas podem ser más. Ele ia, caminhava para dentro de si, mesmo enquanto pensava e olhava. Não via que porta branca era aquela. Apenas sabia que não haveria perdão para ele que ia. Não seria ele quem bateria, poderia ser outro e alguém que pensaria se foi ele mesmo ou não. Ele pensava e entendia tudo, sabia que o perdão não viria, sabia bem, e ia. Quase não batia. Ele sabia que ia. Sabia também que bateria ou quase. Ele queria bater. Mas não haveria perdão para ele. Bateu nela uma vez. Bateu e a feriu e não haveria perdão. A porta branca ia de porta em porta, batendo. Ele tinha batido quando quase disse que ia bater. Ele sabia, bem sabia, que não haveria perdão se batesse. Ou já tinha batido. Sabia que sim. Ele sussurrava sozinho que sim. Estava indo e a porta também ia. A porta era branca. Portas brancas podem ficar fechadas muito tempo e ele bateria mesmo sem perdão, logo bateria.

sábado, maio 12

ÁRVORES

          As árvores são eternas e ficam sempre conosco.
          Lembro das curvas dos galhos. De cada ponto onde apoiar o pé, onde laçar a mão na subida. Galhos a desviar da cabeça, dos ombros, a coxa dando apoio, o braço alçando uma ida às alturas. O chão ficando abaixo e menor. E lá de cima eu era eu. Lá em cima era um outro mundo. As folhas e galhos, meus olhos por entre elas e eles. E o mundo ficava lá fora, além das alturas. A árvore era uma nave e com ela eu viajava longe, voava. Eu, a árvore e meu mundo, lá abaixo.
          As árvores, sim, são eternas e aquela árvore existe ainda assim, de um jeito. Ficou retida no tempo depois de cortada. Quando veio ao chão em seu tronco, fez barulho de morte. Sonoro, alto. Era um grito, eu sei. Ela me chamava, implorava. Minha embarcação, minha amiga, ia a pique por ordem minha, seu capitão. Se eu soubesse não teria cortado. Se eu soubesse que elas são eternas não teria deixado. Ela ficaria a deriva sem nunca sair do lugar e me agradaria. Com algum movimento da folhagem agradeceria e me convidaria para subir de novo e voar. E eu iria.

terça-feira, maio 8

O CAVALO

          Os cascos do cavalo tamborilavam nas pedras da ruazinha. Eram muitas até chegar à prefeitura. Ruas abertas, passando gente. Vielas com casinhas de janelas abertas. Becos pequenos e com cheiro de estrume recente. Muitos cavalos amarrados ficavam meditando junto aos postes nessa cidade. Logo, ele e seu homem chegaram à prefeitura. Era de janelas abertas, como a maioria das outras casas, só era maior. O homem arriou do cavalo, fez entrar na prefeitura e o cavalo já a meditar com seus irmãos. Nada parecia se mover quando o cavalo não andava. As casas paravam de ir para trás, sempre para trás. Era o estado de imobilidade das pedras do chão. O momento em que elas descansavam arrumadas. Passou bem uma hora e o homem saiu. Subiu rápido e saiu feliz a galope. As pedras ligeiras da rua entraram em atividade na hora. Vida de cavalo era não saber porque o homem montado estava feliz a galope. Era não saber porque estava feliz a galope. Mas até as pedras da rua estavam a galope então que importava os saberes dos porquês. Afinal ele era um cavalo.

domingo, maio 6

UM MORTO

          O hospital era claro, cheio daqueles barulhos rápidos e volumosos que irrompem no silêncio. Era verde-claro eu acho. As camas tinham lençóis brancos, bem passados com um emblema qualquer em azul, dizendo o nome do hospital. Acho que para os doentes não esquecerem que estavam num hospital. Meu quarto tinha uma janela que dava para uma árvore. Eu gostava mais da árvore do que das pessoas que vinham me visitar. Eu não queria ver ninguém. Não queria que ninguém me visse.
          Minha morte foi mais ou menos rápida, deve ter sido dentro da média para um moribundo. Fiquei dez minutos morrendo. Pode soar doloroso ou cruel, mas quando se está morrendo não dá tempo para ficar contestando. Ou você morre ou contesta. Eu tinha contestado bastante durante a vida. Agora pretendo apenas curtir a paisagem.

sexta-feira, maio 4

MENINO QUE VOA

          O pequeno menino não percebia o perigo. Sua mãe estava ao telefone com o ex-marido, pai da criança. Os brinquedos estavam todos apoiados no parapeito da janela do oitavo andar. Ficavam lindos vistos de perfil contra a cidade ao fundo. Eram heróis voadores e o menino. A mãe. O telefone. A queda. Ele voava junto com seu herói. Ele podia voar.

quarta-feira, maio 2

A GATA

          Os peixes estavam em cima da mesa. Ela estava certa disso. Não podia vê-los, mas sabia. Era uma boa quantidade de sardinha fresca. Seria fácil pular até a mesa, pegar uma e voltar para o chão. Até iria para perto da lata de lixo da cozinha só para não incomodar. Mas a mulher estava zanzando entre a pia e a mesa e se ela fizesse isso agora haveria consequências ruins. A gata ronronava aos pés da dona implorando uma sardinha.
          Foi então que a mulher miou lá de cima. Miou com agrado e trouxe na boca um pedaço de sardinha até o chão, colocou na vasilha dela e deu uma lambida em sua cabeça. A gata devorou o pedaço. Fibroso e desmanchado, com alguns espinhos deliciosos. Não precisava nem morder, dar uma volta pela boca para reter o sabor e engolir inteiro.
          Ela queria mais um daquele. Não se conteve. Pulou em cima da mesa. Uma imensidão. Um mar de sardinhas a perder de vista. Ela sabia. Nem pôde escolher e já estava fora da casa inteira. Estava de repente no quintal da casa ainda com aquele gosto gigante na boca. Mas ela não lamentava. Espreguiçou-se toda e foi deitar ao sol.

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