sábado, abril 28

O OLHO INCOMPLETO

          Por dentro do olho nada havia de interessante. Nada era visto em sua plenitude, achava o olho. Quase tão certo disso estava que nem olhava. Às vezes pensava as coisas, mas sem olhar. Tinha duas opiniões realmente idênticas. Olhar não leva a nada e não movimenta quem vê. Ato passivo. O olho estava fechado, retido em sua descrença. Apagado e sem julgamentos. Claro, ele não negava, que pensamentos de espiar sempre o atacavam. Uma olhadela rápida. Uma piscada, talvez. Ora, não. Ele não cairia na tentação das imagens, das cores que não param de conversar quando são vistas. Das formas. Daquelas doces e amadas formas intensas, cheias de idas e vindas em si mesmas, ângulos. Eram diabólicas. Serpenteavam para dentro do olho mesmo fechado, entravam pela imaginação, a portinhola que sempre se abre, escancarada e promiscua, para qualquer um. Ele nem reparou que já tinha piscado. Um décimo de piscada na verdade e já tinha visto quem estava lá fora. A luciferíssima, que te toma de assalto e explode. A imagem completa em cor, forma e luz. Inteira e pronta, já feita. Aquela que sempre se entrega antes que se peça. Oferecendo seus segredos a quem nem pediu. Demais traidora de seus próprios mistérios. Senhora da libertinagem. Bem diferente do tato, recatado, que só aos poucos se revela. A luz é devassa. Mas nesse momento ele nem se importava com isso. Entregou-se. O olhar estava feito e só fazia avançar.

quinta-feira, abril 26

O PIRATA

          O pirata era nojento. Sentado esparramado na cadeira, deixava a barriga gorda e peluda para fora da camisa de propósito. Bebia e babava pelos cantos da boca. A barba era espessa com muitos fios brancos, e sempre meio molhada de baba ou de rum. Ao tossir, e ele sempre tossia, quase vomitava.
         Pensamos que estava dormindo com o queixo preso no peito, mas quando aquele homem entrou na taberna ele abriu o olho, único que tinha. O homem caminhou altivo, elegante e colocou-se frente ao pirata. De seu terno impecável o homem perguntou: “Onde?”. O pirata não se moveu por um instante, depois, lentamente, sua mão suja e de unhas compridas tirou do bolso uma corrente grossa de ouro com uma medalha reluzente. Um sorriso encardido abriu-se no rosto do pirata, mas ele não emitiu nenhum som. O homem, ainda de pé, sério, tirou do bolso do paletó um envelope e colocou sobre a mesa. Com a outra mão, o pirata abriu desajeitado o envelope e olhou seu interior. Sorriu mais uma vez com um leve pigarro, impediu uma tosse, e jogou a corrente de ouro para o homem que a guardou no bolso e saiu ligeiro.
         Nunca mais se ouviu falar do homem de terno alinhado. Quanto ao pirata, ele continua por aqui, vendendo mapas do tesouro incrustados em medalhas brilhantes para homens ricos e de boa fé. Estranho que nunca ninguém tenha voltado.

terça-feira, abril 24

DOSES

          Voltou para o bar cambaleando. Sentou e pediu outra, ainda não tinha afogado todas as dores. Mas logo afogaria com mais algumas doses. Se acabassem as dores, afogaria outra coisa.


domingo, abril 22

NEGOCIAÇÕES PELA MANHÃ

          A manhã estava fria e ela não queria sair da cama. Deixou-se levar pelo sono já meio acordada, nem sonhos havia nesse dormitar manso que cobre os olhos nas manhãs em que não se acorda de supetão. Ajeitou melhor a coberta embaixo do queixo. Que prazer no gesto de não expulsá-la de cima. Era sábado. Os pensamentos funcionavam pouco, mas pensava. Sabia que se entregasse cegamente sua consciência a esse sono aparentemente inofensivo, ele poderia roubar-lhe em menos de cinco minutos uma hora inteira ou até mais. Do cochilo simples ao dormir a solto basta uma piscada. Mas ela era experiente, sabia negociar bem com seu velho amigo, sono, esses intervalos e saia no lucro. Os puros pensamentos que estava tendo já faziam o tratante acalmar-se e pedir menos tempo. Enfim, o sono recolheu-se com seus préstimos e negociatas, voltou para dentro de algum lugar e foi dormir sozinho. Ela jogou o cobertor para o alto e levantou-se.

sexta-feira, abril 20

O ASSASSINO


          O assassino aproximava-se da vítima sorrateiramente. Caminhava pelo quarto escondido nas sombras, estava decidido. Segurava o machado com as duas mãos, de lado em relação ao corpo, assim se a vítima percebesse sua aproximação ele teria tempo de desferir um golpe rápido. A vítima estava sentada, de costas com a cabeça baixa, parecia estar lendo alguma coisa. Aos poucos, o assassino foi levantando o machado. Daria um golpe certeiro bem no centro da cabeça. Estava a poucos centímetros da vítima agora. Quase dava para sentir seu cheiro. Nenhum barulho nesse momento. Foi então que ele viu de relance. A vítima estava lendo. Ele viu de relance. Sem querer, ele leu. Mas leu de relance. Algumas palavras apenas. Leu sorrateiro de um golpe rápido. Ele estava lendo. A vítima. Sentada lendo. Ele estava decidido. Só algumas palavras, mas sempre lendo. Sem parar. Eram palavras de relance, mas eram para sempre. Agora eram palavras. Apenas palavras, mas ele lia. Ele viu de relance que estava preso. Preso nas palavras que lia
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